sábado, 27 de setembro de 2014

Samba de Gafieira explicado para os gringos

Imagine o Rio de Janeiro no final do século XIX. Uma reserva reprimida de inteligência cultural se concentrava na carne dos negros recém-libertos da instituição escravista, e pelos discursos do corpo dialogavam com a razão metropolitana dos europeus. A energia estilhaçada do intervalo sonoro do sotaque africano se expandia colonizando a música e a dança europeia.  No lundu, no jongo, na capoeira, a alma da África mantinha sua dignidade de expressão, injetando o veneno da síncope para sempre na veia melódica da música conhecida. A autoridade do europeu continuou presente no estilo: a armação do corpo era a regra nas danças de salão. O Brasil popular, das classes mais baixas, adaptou essa ilusão de elegância conforme elas faziam parte dos seus sonhos. A valsa e a polca representavam prosperidade e riqueza. Mas a sua consciência mesclada e imperceptivelmente conquistada já não permitia ignorar a sensualidade potencial adquirida pelos seus ouvidos indefesos. Os movimentos talvez mais geniais criados em terreno brasileiro envolveram sempre um jogo de cintura incompreensível para o europeu. Inspirados pelas umbigadas do Jongo, o quadril masculino bombeava a mulher pela frente ou por trás, algumas vezes com rotações e sinuosidades que acompanhavam o movimento ondulatório da música. O Maxixe foi primeiramente classificado como a “dança proibida”, para deixar clara a reprovação das classes que mantinham o monopólio da interpretação estética. Os primeiros a contribuir com rebeldia para a independência da expressão corporal brasileira, portanto, foram os dançarinos do Maxixe, parente do samba. E o seu terreiro eram salões situados em sobrados entre o centro, o barro da Lapa e Botafogo. Esses salões eram chamados de gafieira. Conta a mitologia que o termo vem de “gafe”. Gafieiras eram os lugares onde se cometiam “gafes”, erros de etiqueta ou falta de atenção à convenção. Um cronista famoso ajudou a consolidar o título em uma edição do jornal. Como o critério para as gafes vinham justamente de convenções incapazes de entender a nova linguagem que ali se construía, o nome é m tributo. É uma homenagem que se chame a maior expressão da fidelidade corporal à música brasileira de “samba de gafieira”. E assim de fato é chamado, com muito orgulho. O desenvolvimento dessa dança seguiu os passos correlatos ao desenvolvimento da própria música: o tango argentino sempre esteve entre o elenco de influencias da música brasileira, e o refinamento técnico do samba de gafieira teve de passar orgânica e necessariamente por uma fase de influencias fortes do Tango. A personalidade, contudo, se manteve presa à matriz sincopada emprestada da África. A ginga, o molejo, o jogo de cintura e os estilhaços do jogo de pé, compõem a alma do comportamento corporal, e da sensação que a dança procura. A alegria e a tristeza do povo que frequentou as gafieiras do Rio no início do século XX e fim do XIX fecundou o quadro de movimentos, fosse por imitação uns dos outros, fosse por competição. As gafieiras continuaram fecundas por muitas décadas. Hoje a tecnicalidade do samba de gafieira chegou a um nível que exclui as expressões mais diletantes de amadorismo. Temos como resultado uma expansao cultural madura e autônoma, que cresceu em exposição constante às tendências da música, adquirindo mais tarde uma dosagem de influência do morro, das favelas, da paixão pelo futebol, e chegando enfim a uma estrutura refinada de condução e movimentação. Os dançarinos de ballroom samba internacional dancam hoje a uma versão muito antiga do Maxixe, cujo nome mudou mais tarde para samba por puras razoes monetárias. Mesmo os movimentos que permanecem os mesmos, no entanto, foram adulterados até adquirir uma estrutura mais europeia, emprestada de estereótipos latinos, no mais das vezes caribenhos, que ultrajam a memoria da cultura e da musica brasileira. O international ballroom samba não apenas não é samba, como também não é mais Maxixe, mas sim uma mera sombra de traços acidentais copiada a um modelo latino de felicidade e alegria sem fim, que seduz europeus velhos e jovens ingênuos. Arvorados sobre ideais técnicos antigos e tradições clássicas, a federação internacional continua tentando falar por uma realidade cultural que não lhes toca. Ao se referir ao samba, se referem ao “samba brasileiro” como se esse fosse a exceção, mero rebolado erótico e 'exotismo' sem relevância. E se dão o direito de sentir-se indignados e ultrajados se alguém os contesta e pede explicações. O mais escandaloso e a sua consciencia tranquila: acreditam estar quietos, e olham os brasileiros como os que procuram o conflito ... como se não fosse um ultraje e um desrespeito se dar o direito de falar pelo corpo e inteligência de uma cultura da qual eles não entendem: nada. 

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